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domingo, 1 de julho de 2012

A CARAPUÇA: EM QUEM SERVIR




por Julieta El-Khouri

Coisa que mais causa asco na humanidade é a exploração da fé alheia, principalmente a que vem imbuída do abjeto intuito de acumular bens, vender produtos, comprar votos ou qualquer outro tipo de enganação que resulte na lesão do indivíduo. Lesão material ou lesão moral.
A política está tão intrinsecamente entrelaçada nos centros religiosos que, diariamente, eu me lembro desse absurdo. Usam a fé, para lograr êxitos eleitorais.
A hipocrisia salta aos olhos, exacerba os sentidos, desbrava fronteiras, enfim, usa de todo arsenal bélico para atingir seu principal objetivo: ser bem sucedido a qualquer preço . O ser humano é assim desde os primórdios; tanto é que os nossos grandes escritores já abordavam o comportamento, como podemos conferir com Eça de Queiroz.


Teodorico tinha uma tia muito rica. Com o falecimento dos parentes todos, ele se tornara herdeiro natural dela e passou a fazer tudo que ela queria para alcançar seus bens, após a sua morte. Não media esforços em promover simulações e viveu um faz-de-conta durante muito tempo, fingindo-se crédulo, religioso e seguidor dos passos do Senhor tão somente para alcançar a fortuna de “titi”.
Ao final da empreitada, ele tinha por objetivo trazer para sua tia uma relíquia do Oriente, cuja terra ela considerava santa. Ele fingiu beatice o tempo inteiro e trouxe um galho seco, santificado pela sua história mentirosa, colocou-o num envelope para entregar para “titi”. Em outro envelope, idêntico ao que continha o galho, ele recebeu a camisola de sua última amante, marcada de batom, e com um bilhete lembrando as saudosas noites de amor que tinham tido na terra santa (onde ele tinha buscado o "galho santo"). E, por um descuido, o envelope entregue à “titi” foi o da camisola.
Descoberta a farsa, ela o deserdou.
Revoltado pôs-se a perguntar ao Cristo crucificado o porquê de sua derrota, se tudo que fez foi para agradar “titi”, e, num lapso de auto-crítica, sua consciência pesou:


“Subitamente, oh maravilha! Do tosco caixilho com bordas irradiaram trêmulos raios, cor de neve e cor de ouro. O vidro abriu-se ao meio com o fragor faiscante de uma porta do Céu. E de dentro o Cristo no seu madeiro, sem despregar os braços, deslizou para mim serenamente, crescendo até ao estuque do teto, mais belo em majestade e brilho que o Sol ao sair dos montes. Com um berro cai sobre os joelhos (...) e então senti (...) uma voz repousada e suave:
- Quando tu ias ao alto da Graça beijar no pé uma imagem – era para contar servilmente à titi a piedade com que deras o beijo: porque jamais houve oração nos teus lábios, humildade que não fosse para que a titi ficasse agradada no seu fervor de beata. O Deus a que te prostravas era o dinheiro de G. Godinho; e o Céu para que teus braços trementes se erguiam – o testamento da titi... Para lograres nele o lugar melhor, fingiste-te devoto sendo incrédulo; casto sendo devasso; caridoso sendo mesquinho; e simulaste a ternura de filho tendo só a rapacidade de herdeiro... Tu foste ilimitadamente o Hipócrita! Tinhas duas existências: uma ostentada diante dos olhos da titi, toda de rosários, de jejuns, de novenas; e longe da titi, sorrateiramente, outra, toda de gula, cheia da Adélia e da Benta... Mentiste sempre:   e só eras verdadeiro para o Céu, verdadeiro para o mundo, quando rogavas a Jesus e à Virgem que rebentassem depressa a titi. Depois resumiste esse laborioso dolo duma vida inteira num embrulho – onde acomodaras um galho, tão falso como o teu coração; e com ele contavas empolgar definitivamente as pratas e prédios de D. Patrocínio! Mas noutro embrulho trazias pela Palestina, com rendas e laços, a irrecusável evidência do teu fingimento... Ora justiceiramente aconteceu que o embrulho que ofertaste à titi e que a titi abriu – foi aquele que lhe revelava a tua perversidade! E isso prova-te, Teodorico, a inutilidade da hipocrisia!”
(A Relíquia, Eça de Queirós, 1997, pag.201)

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